Curta

Hibernation

Miguel Andrade

Miguel Andrade

·5 min de leitura

"E se eu não perguntei foi porque temia que que tivesses ficado... ou que não tivesses ficado."

São bons tempos para os leitores do Curta & Meia mais apreciadores da ficção científica. Para além da já considerável coleção de curtas-metragens sugeridas pelo C&M neste género, junta-se Hibernation. É a segunda sugestão sci-fi consecutiva, e tencionamos dar ênfase a este género nas próximas terças-feiras (dica: o Curta & Meia publica curtas todas as terças-feiras).

Apesar de Hibernation gritar “sci-fi” o mais que pode, a vertente de drama é igualmente evidente. Honestamente não me consigo decidir em qual dos dois géneros a curta-metragem brilha com mais força. Senti com igual força tanto o entusiasmo típico de uma ficção científica como o arrepio dramático e romântico do enredo.

Mas antes de falarmos do enredo (há muito a dizer nesse campo), comecemos pela execução. Embora também haja bastante a dizer aqui, não acho que haja tanto, mas pelos melhores motivos. Poderíamos resumir com um simples “brilhante”. Toda a curta parece vinda de uma longa metragem de renome. O visual escolhido é perfeito. Confere-lhe aquela sobriedade característica que inconscientemente tanto contribui para a transmissão do enredo. Os cenários também estão perfeitos. A aeronave parece de facto uma aeronave, pelo menos para o comum mortal do espectador (se alguém da NASA estiver a ler isto, por favor confirme o realismo). De realçar também os performances dos atores. As emoções estão sempre “à flor da pele” a narrativa agradece imenso. Estranhei a início o sotaque de Manuela Vellés. Não sei se foi ou não propositado, mas mais tarde fez todo o sentido uma vez que é revelado que a sua personagem tem de nome “Claire Martínez”, sugerindo ascendências espanholas. Para encerrar o capítulo da execução, não podemos esquecer o CGI incrível que Hibernation nos apresenta.

Joseph Wood, a personagem principal juntamente com Claire Martínez, embarca numa viagem espacial em que estará a maior parte do tempo em Hibernação. A viagem durará pelo menos 50 anos e pretende levar o Homem o mais longe possível, explorando novos horizontes. Pouco é revelado sobre o propósito da missão em concreto. Presumo que devido a dois motivos. Primeiro por ser uma curta-metragem, deixando não muito tempo para detalhes potencialmente desinteressantes. Elaborar um propósito para uma missão espacial desta natureza pode ser bastante complexo. Segundo porque o foco da curta é a relação entre as personagens e não a missão em si. É importante a missão existir, mas não é necessariamente importante o que a missão pretende alcançar para o desenvolvimento da narrativa.

É revelado mais tarde, durante a embarcação, que Joseph Wood e Claire Martínez têm um caso, e estiveram juntos na noite imediatamente anterior. O início da narrativa coloca o espectador do lado de Joseph. Este não compreende o motivo pelo qual Claire teria saído sem lhe dirigir uma palavra, enquanto ainda dormia. Mais tarde, a narrativa coloca-nos no lado de Claire e aí percebemos os seus motivos. Claire está apaixonada por Joseph e sabia da sua partida numa viagem praticamente sem retorno. Por um lado Claire quer pedir-lhe para ficar, mas por outro não quer pedir-lhe que destrua o seu sonho pelo qual tanto lutou. Clair decide “não decidir” e deixa tudo em aberto, como se pretendesse escolher as duas opções em simultâneo.

É neste ponto que Jon Mikel decide contar-nos esta história de uma forma nada linear. A partir deste ponto existem duas narrativas em simultâneo: uma em que Joseph abandona a viagem e decide ficar com Claire e outra em que Joseph embarca na viagem e volta 50 anos depois. À primeira vista pode deixar o espectador menos criativo um pouco confuso. Afinal Joseph partiu ou não na missão? Existem várias repostas possíveis.

Universos paralelos? Porque não? A narrativa pode simplesmente ter tomado uma dimensão maior e passar a operar no campo nas possibilidades.

Na física quântica uma partícula pode assumir uma sobreposição de estados. Uma partícula pode exisitr em dois sítios em simultâneo e existe uma interpretação chamada de “many worlds interpretation”. Jon Mikel pode ter simplesmente ter transposto esta visão num romance, numa simples decisão.

Outra hipótese é esta narrativa ter ocorrido apenas dentro da mente de Claire enquanto decidia se acordava Joseph ou não.

Seja qual fôr a explicação, são-nos apresentadas as duas hipóteses. Óptimo! Temos duas curtas numa só. O que é realmente importante é a mensagem de que simples e pequenas decisões têm consequências drasticamente diferentes. É referido várias vezes na curta o “e se”. E se Joseph tivesse optado por medicina como seu pai gostaria? E se?

Não posso deixar de mencionar algumas referências. Se gostaram deste tipo de narrativa não podem mesmo perder “Mr. Nobody”. Foi um filme que me ocorreu imediatamente. Como é sabido, no C&M somos fãs de Interstellar (ver post). Foi outra longa metragem em que encontrei várias semelhanças, principalmente na forma como ficção científica e drama podem funcionar tão bem.

Hibernation honra o género cinematográfico que é a curta-metragem. Definitivamente algo a ver e recordar.